Saúde é direito de todos e dever do Estado – é o que diz a Constituição brasileira. Desde 1988, todos os brasileiros, independentemente de vínculo empregatício, passaram a ter direito à saúde universal e gratuita. Este direito fundamental contribuiu com a qualidade de vida dos brasileiros.
No capítulo 1 desta série, apresentamos o Sistema Único de Saúde. Um sistema que é referência internacional, com muitas ilhas de excelência e progressos em seus 30 anos de existência. Mas por que a saúde ainda é avaliada como o principal problema dos brasileiros? Vamos tentar entender os grandes problemas se colocam neste esteio.
Financiamento governamental insuficiente
A saúde pública é financiada com recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
O Brasil destina o equivalente a 10% do Orçamento da União para a saúde – um percentual semelhante ao de países como França e Alemanha, mas ainda insuficiente para as necessidades da população. O recurso é muitas vezes mal gerenciado, marcado por fraudes, desperdício e corrupção.
Em todo o mundo, os recursos para a saúde pública vêm aumentando. Em nosso país, os gastos mantiveram-se estáveis, enquanto a população crescia e envelhecia. E entre 2014 e 2015 tivemos uma retração porque o orçamento é vinculado à arrecadação e, portanto, ao crescimento econômico.
“O SUS ficou no meio do caminho, a saúde é direito de todos, o acesso da população aumentou, mas persistiram problemas básicos de qualidade.“, ressalta a médica e professora Lígia Bahia.
Atendimento ambulatorial precário
Além da falta de hospitais, médicos e de medicamentos em todo o território nacional, o gargalo maior está na dificuldade de conseguir atendimento – os prontos-socorros vivem lotados de pacientes que poderiam ter sido atendidos em consultórios médicos.
O oncologista Drauzio Varella traduz o problema: “Um ambulatório que funciona bem resolve 90% da demanda. 10% são casos mais complexos, que precisam de exames especializados e de hospitais de atendimento terciário, com mais tecnologia. Como o atendimento ambulatorial normalmente é de má qualidade, quando as pessoas ficam doentes, correm para o pronto socorro, pois sabem que, apesar a demora, serão atendidas. E aí vemos filas intermináveis. Se essa pessoa for marcar consulta na unidade de saúde do bairro, pode levar semanas”.
“Como o atendimento ambulatorial normalmente é de má qualidade, quando as pessoas ficam doentes, correm para o pronto socorro, pois sabem que, apesar a demora, serão atendidas. E aí vemos filas intermináveis.” Drauzio Varella
A porta de entrada do sistema de saúde deveria ser a atenção básica, que inclui postos de saúde, centros de saúde, unidades de Saúde da Família, entre outros. A partir desse primeiro atendimento, haveria o encaminhamento para hospitais e clínicas especializadas.
Envelhecimento da população
O Brasil está envelhecendo. A nossa expectativa de vida hoje é de 75,5 anos. Em 1960, o brasileiro vivia em torno de 55 anos.
Esse avanço rápido se deu graças às melhorias nas condições sanitárias, à alimentação, à vacinação em escala, aos avanços da ciência e à ideia de que a saúde é qualidade de vida, não ausência de doença. O número de pessoas acima dos 60 anos no Brasil (hoje em 12,5%) deverá quase triplicar até 2050, ultrapassando a média mundial, de acordo com o Relatório Mundial de Saúde e Envelhecimento.
E essa realidade vem trazendo uma mudança no perfil de óbitos: as maiores causas de mortalidade no país são doenças cardiovasculares (33%), câncer (20%) e mortes violentas (13%).
Drauzio Varella nos ajuda a entender: “O Brasil fica mais velho e envelhece mal: 52% dos adultos estão acima do peso saudável, metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial, perto de 12 milhões sofrem de diabetes.”
Como atender às necessidades de uma população que envelhece, engorda, fica sedentária e desenvolve doenças complexas como ataques cardíacos, derrames cerebrais, diabetes e câncer? “Cada um de nós tem que assumir a responsabilidade por sua própria saúde”, ressalta ele. Seria a saúde, além de um direito de todos, também um dever?
Judicialização do SUS
Outra característica que vem marcando o sistema é o enfrentamento das demandas a partir de ações no judiciário.
É simples: o Estado não consegue garantir o direito universal e igualitário à saúde, conforme previsto na Constituição, então a população recorre à Justiça para conseguir medicamentos, vagas para internação, próteses e até mesmo a continuidade do tratamento hospitalar em casa.
Enquanto muitas ações se refiram a coberturas que deveriam ser garantidas pelo SUS, como solicitação de leitos de UTI, mais de 60% das ações judiciais contra o SUS em São Paulo para aquisição de remédios são iniciadas por pessoas com convênios médicos particulares ou que frequentam clínicas privadas.
“É uma espécie de Robin Hood às avessas: tira dos mais pobres para dar a quem tem condições de pagar por um bom advogado. E o que é mais sério: passando na frente de outros que aguardam há mais tempo, mais graves e com expectativa de melhores resultados.“, afirma David Uip, secretário estadual da Saúde de São Paulo.
Nos pequenos municípios, as liminares concedidas aos pacientes são especialmente danosas, desestruturando o SUS. A advogada Lenir Santos explica: “Quando um juiz determina que uma cidadezinha pague um transplante, por exemplo, isso consome com um único paciente 30% dos recursos destinados a cuidar da saúde de milhares de pessoas. É fundamental definir o que o Estado garantirá a todos. E aquilo que for definido tem de ser realmente para todos – em quantidade e em qualidade. O cidadão que recebe uma liminar judicial sai da fila. Passa na frente dos outros pacientes e conquista um recurso que não estará disponível para todo mundo. Isso fere o princípio constitucional da igualdade.”
No final de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a avaliar se os governos devem ser obrigados a dar remédios de alto custo fora da lista do SUS e sem registro no Brasil. Os Estados esperam um freio nos processos, devido ao impacto nas contas públicas para atender demandas individuais. Já pacientes esperam a ampliação do acesso a medicamentos.
“As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial”, analisa o ministro Luis Roberto Barroso, em um artigo sobre a judicialização da saúde.
E agora, José? Com alguns dos principais problemas do SUS expostos, podemos entender, pelo menos superficialmente, onde estão os gargalos do sistema. Não há uma solução única e a luta pela efetivação do direito à saúde no Brasil ainda permanece.
No próximo capítulo vamos analisar a situação de um importante hospital público de perto.
+ Leia aqui o capítulo 3 da série: SUS, capítulo 3: o Hospital Universitário da USP resiste