Desde criança nos deparamos com o medo. A cortina do quarto, quando mexe, se transforma em fantasma que dança. Os móveis e objetos fazem sombras assustadoras nas paredes. A respiração fica suspensa, nossos olhos esbugalham e rapidamente se contraem espremidos…
Para nos proteger, enfiamos a cabeça dentro da coberta, igual tartaruga se escondendo no casco. Como se aquele lençol fosse escudo, sabe?
Ficamos encolhidinhos, igualzinho quando éramos bebês na barriga da mãe. O coração fica mais acelerado que trote de cavalo de corrida, parece que vai saltar pela boca. Cuidamos para que de nossos pés não escape nenhum dedo mindinho fora da cama, pois é embaixo dela que mora o perigo. É lá que os monstros descansam.
A voz do escuro são os ruídos. Por mais silencioso que seja o lugar, esses sons aparecem bruscamente e vão embora, deixando um ‘até logo’ no ar.
Tudo que mora dentro da casa parece se comunicar, portas, ventilador, torneiras, como se fizessem complô para assustar. Fico pensando o que eu fiz contra eles. Devo em algum momento de raiva ter batido forte a porta, mas o problema não era com ela!
Eu devia ter me aborrecido com alguma coisa e acabei descontando nela. Ela sabe que tenho medo do escuro e, para dar o troco, fica esperando que eu me esconda debaixo da coberta para começar seu show. Mesmo fechada, ouço seu rangido agudo. Nhennnn… Nhennnn…
Ouço ainda passos, como se os sapatos, que ficam muito tempo no armário, saíssem para dar um passeio no corredor. Tudo isso acontece durante o banho da mãe, tempinho que parece uma eternidade para a criança.
Entendi que não adianta fechar os olhos quando estamos com medo. Os monstros colam na retina, escorregam para dentro e parece ficar maiores.
O escuro é deserto povoado pela imaginação. É moldura de quadro surrealista. O tamanho do escuro é imenso, e nós somos proporcionalmente menores que ele, igual quando brincamos de olhar nossa sombra no chão. Quando nos aproximamos, ela cresce e, quando nos distanciamos, a sombra diminui.
É como se para encarar o medo fosse preciso tirar ele de dentro, colocá-lo na nossa frente e dar a ele a dimensão que queremos dar.
No hospital, encontramos Artur, paciente de aproximadamente oito anos. Não estava escuro, era manhã e, talvez por isso, de olhos abertos, brincamos com o medo.
Eu estava me disfarçando com uma peruca loira e Artur, que tem imaginação fértil, de imediato disse que eu era a Loira do Banheiro. A partir daí coisas estranhas começaram a acontecer…
Câmera ligando e desligando. Uma hora eu aparecia de Svenza, outra hora de Loira do Banheiro, em outro momento, novamente de Svenza e aparecia ao lado só a peruca loira. Artur gritava: “Olha a Loira, olha a Loira! Cuidado! Ahhhh!”
Ruídos de trovões feitos com radiografias. Pedido de socorro. Correndo de um lado para o outro aparecia Micolino, mais frouxo que dentadura. Até uma caveira surgiu no meio da história. Euforia, adrenalina, como nos filmes.
Por fim, tela escura. Silêncio. Micolino: “Cadê Svenza?”. E Artur: “O que será que a Loira do Banheiro fez com ela?”.
Eu apareço de pernas para o ar, com os sapatos encostando no topo da cabeça. Não sou contorcionista e isso só poderia ter sido um feitiço. Artur e Micolino ficaram de boca aberta.
Ainda bem que Artur sabia dizer umas palavras ancestrais que fizeram com que meus pés alcançassem novamente o chão. Foi por pouco e tudo voltou ao normal.
Eu só não disse ao Artur que o medo nos acompanha até quando ficamos grandes. Não o medo do escuro da lâmpada apagada, dos sons que brotam na madrugada, da risada de bruxa.
Os monstros são outros e eles não moram mais debaixo da cama e nem vão embora quando a mãe sai do banho.