Sinto receio em falar de morte. Penso que morte é a antítese da alegria. A morte traz tristeza. Mas como posso não pensar e não falar nisso com a realidade batendo à porta de forma tão dura?
Como ficar alheio a toda essa dor que nós, como sociedade, estamos vivenciando? Desculpe, não consigo ser insensível ao ponto de dizer que está tudo bem. Até gostaria, mas não consigo.
Trabalhamos com pessoas que estão se recuperando da Covid-19 e lembrei de uma conversa que eu e a Dra. Emily tivemos com uma senhora em uma de nossas visitas virtuais.
Ela disse que chegou “lá na portinha da vida com a morte”. Contou que tinha o costume de falar que não via a hora de morrer, que a vida já não tinha tanta graça, e que estava velha aos seus 65 anos.
Mas quando chegou lá no limiar, ela correu.
Correu da morte, não quis cruzar a linha e conseguiu voltar. Disse que nunca tinha reparado na sua respiração e, agora, a respiração era a coisa mais importante do mundo. Falou que estava educando o estômago para comer melhor do que comia porque depois que deu de frente com a morte, ia fazer o possível pra adiar o encontro.
A senhora disse que sua casa ficaria pequena, pois não caberia o tanto de filhos que tinha ganhado no hospital. Enfermeiros e enfermeiras, médicas e médicos, o pessoal da comida e da psicologia. Ela sentia felicidade em abrir os olhos mais uma vez e agradeceria a todos para sempre pela chance de viver mais um dia.
Foi uma conversa bonita com essa senhora. Ela estava “reconfigurando” o sentido da sua vida. As coisas mais triviais, como respirar e abrir os olhos depois de acordar, tinham ganhado novo sentido, nova importância.
Fiquei feliz com a nova chance dessa senhora refazer sua história, de escrever as páginas em branco de um novo dia. E me pego pensando nas milhares de vidas que “cruzaram a linha“. Que não tiveram uma segunda chance!
Fico aqui pensando que essa linha era evitável, que não era preciso ter cruzado se apostássemos que todas as vidas são mais importantes do que qualquer coisa. Se tivéssemos, como sociedade, apostado em cuidar uns dos outros, e não “cada um por si” como a gente está vivendo.
Se eu tivesse algum cargo de poder, eu colocaria empatia no centro do governo. Aprenderíamos da pré-escola ao pós-doutorado a matéria de se colocar no lugar do outro. De se compadecer com a dor do outro.
Ultrapassamos os 400 mil mortos no Brasil. Todo mundo já teve alguém próximo que sucumbiu a esse vírus. Um amigo, um conhecido, um familiar. Vidas que não voltarão mais, cruzaram a porta da vida e da morte.
Mas a gente está aqui. E enquanto a gente adia essa conversa inevitável com a morte, pego os ensinamentos da senhorinha e agradeço todos os dias a felicidade de abrir os olhos.