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Além dos hospitais: um retrato do que bate à nossa porta

5 de outubro de 2017
Tempo de leitura: 3 minutos

Gabriela Caseff

Editora do Blog. Atua na comunicação da Doutores da Alegria desde 2011 e é repórter na Folha de S.Paulo

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O que entra pela porta de um hospital público é o reflexo da comunidade. Falta de saneamento básico, descuido com a alimentação, poucos espaços de lazer, violência doméstica, sexual, de identidade, intelectual: está tudo ali.

E o que entra pela porta da sede do Doutores da Alegria, há precisamente 14 anos, também é um retrato da cidade de São Paulo.

Todos os dias, pouco mais de 20 jovens de diversos cantos desta metrópole se encontram aqui para ter aulas profissionalizantes de palhaço. O curso é gratuito e focado em jovens com o sonho de ganhar o mundo com seu nariz vermelho. Adolescentes, quase adultos, que não têm garantidos os direitos mais básicos nas comunidades em que vivem, mas apostam numa formação de qualidade e na arte como seu ofício.

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E se o que entra pelo hospital se torna matéria prima para o palhaço besteirologista, o que entra pela porta da nossa sede é alimento para Doutores da Alegria enquanto instituição. Um destes estudantes trouxe uma experiência que faz parte da rotina de jovens e pobres da periferia: uma abordagem policial. Eis o seu relato:

“Hoje fui abordado pela polícia e tinha tudo pra ser uma enquadro “normal”. Perguntou onde eu moro, onde trabalho e o que estava fazendo ali. Respondi tudo da melhor forma possível. O policial me revistou, revistou minha mochila deixou uma zona.
Até que ele pediu para ver meu celular e pediu para eu desbloquear para que ele visse em que nome o iMei do celular estava.

Perguntou de quem era o celular. Eu disse que era meu. Ele perguntou quem me deu já que eu não trabalho. Pobre e preto de iPhone é uma ofensa. Eu disse que comprei. Ele perguntou como. Eu tive que explicar que trabalhei. Perguntou em que loja eu comprei. Eu disse que comprei de um amigo. Ele insinuou que meu amigo roubou e foi para o carro.

Chegando lá, ele viu que o celular não fui eu quem comprei, foi comprado por outra pessoa. Foi em minha direção pegou meu punho de uma forma grosseira e ignorante ao ponto de fazer meu relógio sair do pulso. Ele pisou no meu relógio ao ponto de quebrar e arranhar. Me colocou no porta mala da viatura e disse que eu iria para delegacia.

Eu implorei perguntando se eu poderia ligar ou mandar mensagem para a pessoa que comprou. Ele disse para eu mandar mensagem na frente dele. Eu mandei. Meu amigo respondeu rapidamente. O policial foi para o rádio e confirmou o cpf. Depois de um tempo, me liberou como se nada tivesse acontecido. Meu relógio quebrado não era meu maior problema.

O problema é que amanhã vou passar nessa rua novamente e sei como vou ser lembrado por aquelas pessoas que viram.”

É sabido que jovens e negros são as principais vítimas de violência no país. O Brasil registrou*, em 2015, quase 60 mil homicídios. Foram 60 mil assassinatos em um ano. Os homens jovens (15 a 29 anos) continuam sendo as principais vítimas: mais de 92% dos homicídios representam essa parcela da população.

A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Negros possuem 23,5% mais chances de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontados os efeitos da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.

[* dados do Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. ]

Os números e casos como o deste estudante ilustram uma realidade que às vezes esquecemos ou tentamos fingir que não está ali, mas que bate à porta todos os dias. A violência contra a população jovem e negra cria marcas profundas que vão sendo reeditadas na sua pele todos os dias. A situação é ainda agravante para as mulheres negras, que sofrem com o racismo e com o machismo em nossa sociedade.

A história do Brasil é carregada de violência contra a população negra, desde a violência que foi socialmente aceita, como a escravidão e as políticas de branqueamento da população (a serem tratadas no próximo capítulo), até a violência implícita que se dá através do preconceito racial. Negros ocupam os maiores bolsões de pobreza do país, são maioria nas penitenciárias e sofrem por não ter representatividade.

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Nossa sociedade precisa agir de maneira efetiva para diminuir estas pequenas e grandes tragédias. Movimentos sociais e coletivos se mobilizam para exigir políticas públicas para frear a discriminação em todas as esferas de poder, sobretudo pautadas na educação de base, trazendo luz à história africana do ponto de vista dos negros.

A arte é outro campo que pode contribuir com este movimento, desconstruindo conceitos e questionando a visão eurocêntrica. A Escola dos Doutores da Alegria se ocupa em formar artistas engajados, com capacidade de ler a realidade em que estão inseridos e propor uma intervenção crítica.

E se inspirar políticas públicas é nosso dever como organização, é preciso beber da fonte de movimentos sociais e dialogar com estes jovens. O caminho para uma sociedade responsável e de relações saudáveis já bate à porta de todos nós.

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Gabriela Caseff

Editora do Blog. Atua na comunicação da Doutores da Alegria desde 2011 e é repórter na Folha de S.Paulo


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Cultura como direito, Séries

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antirracismo, arte, educação, Escola, jovem negro, movimento social, mulher negra, Programa de Formação de Palhaço para Jovens, racismo, violência

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