No último mês de julho, eu, Dra. Nina Rosa, e Dr. Chico, completamos nosso primeiro semestre no Hospital Universitário. É o primeiro semestre também, em 27 anos de instituição, em que fazemos a experiência de atender a ala adulta.
Ainda há várias questões que circundam essa experiência: por que, neste momento, atender os pacientes adultos? Será que alcançamos os mesmos impactos que conseguimos com as crianças? As relações com a figura do médico besteirologista fazem sentido ali também? Essas e outras perguntas inundam os nossos pensamentos todos os dias, mas sabemos que elas são válidas na tentativa de entender as especificidades desse trabalho, o que fazemos e o porquê, já que é mais um campo de atuação que se abre.
Estou me arriscando a responder algumas delas. Por conta das ameaças de desmonte do HU, nosso parceiro há anos, o número de crianças internadas tem diminuído, o que poderia ameaçar a nossa presença no hospital. Mas resolvemos permanecer ali, porque estão todos lá, lutando para que as coisas mudem. Neste tempo, por que não experimentar outras alas? Por que não os adultos? Talvez isso responda o porquê de estarmos atendendo adultos neste momento – nem antes e nem depois na nossa história como Doutores, como uma resposta nossa a essa luta dos profissionais. Estamos juntos, descobrindo lugares e fortalecendo novas relações para existirmos como coletivo.
Será que palhaço não é coisa só para crianças? Talvez, quando chegamos, esse tenha sido o primeiro pensamento dos profissionais que estavam acabando de conhecer nosso trabalho. É assim também com os pacientes que nos recebem ali todos os dias. Mas estamos falando da figura do médico besteirologista, do palhaço médico, não de qualquer palhaço. Um palhaço médico, especialista em besteira, bobagem e bobice. Então está explicado, está aberta a porta, o caminho para que digam: “ah, claro, então tudo bem, podem entrar!”. Talvez seja simplesmente isso: faz sentido sermos os “médicos” em um hospital onde os médicos também são professores, que ensinam a medicina a residentes que terão que lidar com os seres humanos e suas doenças sem esquecer da humanidade… E, quem sabe, a bobagem aproxime os seres para além da relação paciente e médico. Bem, quem sabe, é nisso que eu ainda acredito quando coloco o jaleco.
Quanto à questão sobre alcançarmos os mesmos impactos, é difícil responder por aqueles que estão vivendo a experiência. Posso dizer do ponto de vista de cá… De quem carregou neste primeiro semestre uma história que acompanhava meu pensamento, que fez parte dos meus relatórios e que se encerra aqui. Impacto, no dicionário, significa colisão de corpos e/ou impressão ou efeito muito forte deixado por certa ação ou acontecimento.
Impacto
O meu impacto se chamava F., um homem jovem que chegou quase no mesmo período que nós na clínica médica. Por motivos que nem sei quais, ele foi internado, e lá descobriu o HIV, o que o afastou da sua família – pelo que entendemos, a mulher e o filho pequeno não o visitavam. Esse foi nosso primeiro dia sabendo da existência dele: recebemos as recomendações da chefe da enfermaria de não atendê-lo, pois ele havia acabado de descobrir que tinha o vírus. Somente o olhamos de longe, ele num silêncio profundo, no mesmo quarto onde atendíamos os outros pacientes.
Mais para frente, após algumas tentativas, mas quase nada de relação estabelecida, entramos devagar e conseguimos uma breve conversa. Uma conversa sobre solidão, tão difícil e pesada, que o palhaço apenas ouve e suaviza como pode (porque o ser humano que somos também carrega esses medos). E assim, em paralelo, seguimos até o São João, dia em que todos os pacientes ficam juntos na sala de TV, para assistir ao nosso “Arraiá dos Dotô da Alegria”. Lá estava ele, com o mesmo olhar de não querer o mundo, de não querer nada de conexão com o outro. De repente, quando uma das calouras do nosso show de talentos, funcionária do hospital, começou a cantar, ele se deixou invadir de emoção, negando com a cabeça o que os olhos não o deixavam mais esconder. Mal pude olhá-lo, para segurar a minha emoção de vê-lo ali presente…
Antes das nossas férias, o vi pela última vez, sedado e bastante debilitado. Ao voltar da semana de folga, soubemos pelas enfermeiras que ele havia partido; que, depois de muito esforço, conseguiram convencer sua esposa a trazer o filho para visitá-lo. No mesmo dia em que ele pôde ver seu filho, faleceu ao anoitecer.
Pelo menos eu soube que, por alguns instantes, houve remédio para sua solidão… Quanto a nós, se o impactamos, nunca vamos saber. Faz parte do nosso trabalho essa imprecisão, de não sabermos ao certo para quê e o porquê existir.