Um corredor em tons pastéis com ilustrações infantis. Enfermarias com poltronas desgastadas e uma TV passando desenho. Se for São João, bandeirinhas suspensas no teto. Chorinhos de neném em contraste com o tom monotemático dos aparelhos. Portas coloridas com duas ou três mulheres à espera de uma visita ou notícia boa.
É mais ou menos esse o cenário da ala infantil de um hospital público atendido pelos Doutores da Alegria. Ou pelo menos era antes da pandemia.
Nesse período crítico em que nossos artistas deixaram de atravessar corredores para serem carregados de leito em leito em um tablet, vimos a adaptação que hospitais fizeram para atender às demandas da Covid-19.
Espaços de atendimento infantil se voltaram a adultos que precisavam de isolamento. Macas extras foram instaladas e uma nova sinalização deu conta de isolar pessoas com sintomas da doença.
Pelas telas, em 2020, nossos artistas viam o esgotamento de profissionais de saúde e evidenciavam na prática o adoecimento diante da exaustão emocional. Por vezes, a besteirologia foi válvula de escape no ambiente hospitalar.
Crianças que enchem as enfermarias em março, quando infecções respiratórias levam a internações, e em períodos de férias escolares, quando os pequenos se acidentam em brincadeiras nas ruas, estavam sendo protegidas do vírus em casa.
Quando a vacina chegou e a pandemia arrefeceu, cirurgias eletivas retornaram à agenda do SUS e famílias voltaram a buscar o hospital para atendimentos diversos. Nossos palhaços e palhaças vacinados retomaram, aos poucos, as visitas presenciais.
O cenário de guerra dos meses anteriores mudou. Não sei se para melhor.
Doutores da Alegria sempre encarou o hospital como laboratório vivo que reflete o que acontece na sociedade, um espelho social. Em nosso retorno, notamos crianças e adultos em extrema vulnerabilidade, algo para além do que estávamos habituados a ver em um hospital periférico de São Paulo, Recife ou no Rio de Janeiro.
De pacientes a profissionais de saúde, todos foram afetados em algum grau pelas consequências da crise sanitária, econômica e política que tem levado brasileiros à miséria.
Segundo levantamento do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social, 47 milhões de pessoas terminaram 2021 na pobreza –o equivalente a 22,3% da população. São 19 milhões de crianças e adolescentes com seu futuro comprometido.
Dado que se reflete na insegurança alimentar, na educação, na saúde, no desenvolvimento cognitivo. E mesmo que a pobreza tenha avançado em todo o Brasil, a parcela da população mais impactada é negra —73% do total.
Ainda que os corredores tenham preservado os tons pastéis e que os desenhos na TV continuem os mesmos, as poltronas do SUS agora descansam mulheres mais pobres, com menos oportunidades de emprego, cujo rendimento vem sendo corroído pela inflação e com dificuldades em garantir moradia e alimentação para seus filhos. Isso sem falar no aumento da violência doméstica, exacerbado no período pandêmico.
A arte pode amparar o trabalho de profissionais da saúde, deixar boas memórias do período de internação para as crianças, curar feridas emocionais e abrir janelas invisíveis, mas esse cenário social desolador terá que ser enfrentado com políticas públicas.
Só o Estado tem o poder e a escala necessários para melhorar a condição de vida de sua população. No entanto, empresas precisam cada vez mais se comprometer com essa parcela da sociedade, usando recursos e sua posição social para enfrentar desigualdades.
Pessoas precisam cobrar ações incisivas de seus governantes e apoiar organizações da sociedade civil que atuam na ponta, seja em hospitais, em favelas, em terras indígenas ou no Congresso Nacional.
Cada um tem seu papel neste momento decisivo e apenas com a colaboração de todos teremos um país que ofereça um futuro com mais dignidade para crianças e adolescentes brasileiros.
Por Luis Vieira da Rocha, diretor-presidente