Acontece que aconteceu o seguinte:
Por essas coisas da vida, meu cotidiano hospitalar acabou se mesclando à minha vida pessoal.
É que meus pais têm câncer.
E, por essas artimanhas do destino, tanto minha mãe quanto meu pai “resolveram” passar juntos uma temporada convalescendo na ala oncológica de um hospital localizado no lado oposto da linha do metrô que me faz ir duas vezes por semana palhacear no Itaci, Instituto de Tratamento do Câncer Infantil.
Eu passava a noite com meus velhos na enfermaria e, pela manhã, partia para o trabalho.
Apenas algumas estações de metrô separavam o hospital em que eu estava com meus pais do hospital para onde eu ia trabalhar. A linha do metrô era a mesma, a patologia era a mesma, as medicações eram as mesmas e, acreditem, até um dos médicos era o mesmo. O tal doutor, assim como eu, transitava entre os dois hospitais.
A diferença é que eu mudava de função durante o trajeto da linha verde. Saía como acompanhante, olheiras nos calcanhares, e chegava para ser palhaço, sorriso nas bochechas (e maquiagem cobrindo as olheiras).
Outra coisa que muda é a idade dos pacientes. Uns oitenta anos separa a data de nascimento dos meus pais da data de nascimento das crianças do Itaci. E isso muda tudo!
Ser filho de alguém com câncer é duro. Ser pai de alguém com câncer é impensável.
Mas a vida não é só isso. Não pode se resumir num câncer. Só que era isso que eu não conseguia me dizer naquelas semanas viajando de um hospital ao outro.
E não ajudaram nada nessa tarefa os óbitos que se encadearam no Itaci nas semanas subsequentes.
É tão insólito: a semana em que K. morreu foi talvez aquela em que ele mais interagiu conosco. Apesar da gravidade do seu caso, havia uma disposição surpreendente em seu semblante. Ficamos sabendo do seu falecimento antes mesmo de voltarmos ao hospital na segunda-feira. Nas redes sociais, sempre tem um “amigo do amigo do colega do conhecido de alguém” que faz a informação chegar aonde menos se espera. Foi assim que a notícia entristeceu aquele nosso fim de semana e, até agora, momento em que escrevo, ainda me consterna.
S. faleceu uns dias depois. Em nosso último encontro, ele portava uma inusitada camisa da seleção brasileira: uma camisa cinza! Provavelmente uma roupa de treino, mas oficial, com brasão, estrelas e tudo mais. Como S. estava sonolento, me virei para a mãe dele e disse:
– Este menino está bem brasileiro hoje, não está?
– Hoje não, ele é brasileiro sempre, ela respondeu.
Nisso, S. abre a metade dos olhos e retruca:
– Não sou não, mãe.
– Ué, como assim não é brasileiro, meu filho?
E, do alto de sua infantil inocência, S. nos lança:
– Eu sou corintiano.
É essa inocência que resolvi guardar na memória, além de sua coragem diante do imponderável.
Não, a vida não é um câncer.
Boa parte das crianças tem alta e não são poucas as que se curam para sempre. E quando estão no hospital, tratam de brincar, cada uma do seu jeito, cada uma dentro de suas possibilidades.
L., no dia de sua alta, brincou de esconde-esconde com a gente. Esconderijo dentro do armário, atrás da poltrona e até agachada no meio do quarto tampando os próprios olhos com as mãos, como se não a víssemos.
P. nos aponta seu boneco do Incrível Hulk e pergunta:
– Sabe quem é mais brava do que o Hulk?
A gente balança a cabeça negativamente. Então P. responde:
– É a mãe dele, porque ele sempre volta para casa com a roupa rasgada!
E, para terminar, J. nos deu uma aula, ou melhor, uma lavada de 3 a 0. O garoto comia sua gelatina com um olho no celular e outro na TV. A mãe, requerendo a atenção de J. diante dos palhaços, desligou a TV. Nisso, J. voltou-se só ao celular (1 a 0).
A mãe retirou o celular, J. concentrou-se na gelatina (2 a 0). E, antes mesmo que a mãe tivesse a ideia de tirar a gelatina, nós já reconhecemos a derrota (3 a 0).
J. nem comemorou o resultado, apenas nos ignorou e engatou uma sequência de colheradas na sobremesa. Havia vida pulsando em J. e ele direcionou esse pulsar a outras coisas que não a gente. E está tudo certo. Nosso dia terminou com a sensação de missão cumprida.
Então eu volto para a linha verde, para mais uma jornada ao lado dos meus velhos. Chegando lá, viro para o meu pai, para minha mãe, e começo:
– Vocês sabem quem é mais brava do que o Incrível Hulk?
*Usamos apenas as iniciais dos nomes das crianças para preservar suas identidades.