A UTI pediátrica é um lugar cheio de mistérios. Muitas vezes entramos e encontramos crianças dormindo, sedadas ou isoladas. Outras vezes, damos de cara com crianças superespertas e acordadas. Dr. Valdisney e eu, Dra. Lola, adoramos acompanhar a sequência que se segue. Siga-me:
No dia 1, a criança está cheia de tubos e fios, sedada. A gente conversa com a mãe, que está meio chorosa, e toca uma música.
No dia 2, a criança está dormindo, sem tantos tubos e fios. Falamos com a mãe e notamos um ligeiro sorriso no rosto.
No dia 3, a criança está acordada, mas deitada. Olha para nós desconfiada e não dá muita bola.
No dia 4, a criança está sentada na cama, desenhando ou brincando. Quando nos vê, abre um sorriso, brinca conosco e quase não nos deixa sair.
No dia 5, ela já não está na UTI e sim num quarto da enfermaria, bem mais animada. Conta histórias, mostra fotos e tira fotos com a gente.
No dia 6, ela está correndo pela enfermaria como se estivesse em um parque. Puxa nosso jaleco, mexe em nossos bolsos, toca os nossos instrumentos.
No dia 7, recebe alta, toma aquele banho e sai toda cheirosa sem olhar para trás.
No dia 8 já está em casa, livre, leve e solta.
Essa sequência é inventada. Idealizada, eu diria. Na realidade, quase nunca acontece assim. A ordem dos fatores pode se inverter e as várias fases podem se repetir ou se suceder em ordem aleatória. A vida é cheia de surpresas. Vou contar uma dessas surpresas que aconteceu por ali.
Nosso portal da UTI é Carmem. Carmem é uma história à parte, né? Nossa grande parceira, cantora sorridente de repertório vastíssimo e muitos causos para contar. Ela fica na salinha logo na entrada da UTI e é a porta voz das notícias locais. Sempre que chegamos por lá, cantamos músicas do arco da velha (mais da velha do que do arco, eu diria) e ficamos conversando um tempão.
Um dia chegamos ali e ela estava com uma cara muito triste. O clima estava pesado, uma criança havia chegado em estado muito grave e as notícias não eram boas, parecia que ele não teria muitas chances de sobreviver. O pai estava chorando muito e fomos aconselhados a não entrar, pois a situação era extremamente delicada e poderíamos ser mal interpretados. Nem todos sabem que somos besteirologistas, muitas vezes nos confundem com palhaços, vê se pode? Bom, neste dia não entramos na UTI, preferimos respeitar o momento.
No outro dia, perguntamos pela criança e ela ainda estava em estado grave, mas pudemos entrar. Era um menino grandinho, uns sete anos, todo cheio de fios e tubos, sedado. A mãe não quis saber de conversa com a gente, então fomos trabalhar com as outras crianças da UTI. Por muitos e muitos dias o menino permaneceu ali, na mesma posição. E cada vez que entrávamos, a mãe fingia não nos ver. Percebemos que ela não queria que nos aproximássemos e não forçamos nada.
Um belo dia, quando entramos, levamos um susto. O leito do menino estava vazio. Meu estômago apertou, meu coração gelou, mas criei coragem para perguntar para uma enfermeira: “Cadê o M.?” Temendo a resposta, fingi naturalidade. E ela me respondeu: “Está em cirurgia. Foi colocar a tráqueo, assim vai poder receber melhor os remédios.” Eu não entendi direito, mas fiquei aliviada e fiz cara de coerência. Afinal, sou médica. O que eu entendi é que aquele era um passo importante para o menino e que a equipe estava esperançosa com sua recuperação.
Já no outro dia, quando entramos na UTI, as médicas estavam empolgadíssimas! Assim que nos viram, fizeram questão de nos levar até o leito de M:
– Vamos, vem cá! Vocês precisam ver uma coisa!
Chegando lá, demos de cara com um lindo menino, sentado na cama, acordado, colando figurinhas no álbum da copa. Nossa! Eu fiquei muito emocionada. Emocionada de ver aquele menino renascido, feito fênix, emocionada de ver as lágrimas de alegria nos olhos da mãe, emocionada de ver a felicidade das médicas com a recuperação do menino. Que coisa mais linda!
Fizemos uma festa! Jogamos futebol, cantamos e rimos. Mas tivemos que prometer ao M. que no próximo encontro iríamos trazer figurinhas repetidas para trocar com ele.
E falando nisso, vou parando por aqui, pois agora preciso sair, aproveitar que a banca ainda está aberta para comprar as figurinhas. Afinal, amanhã estarei no hospital e quero manter minha palavra. M., me aguarde que amanhã vamos trocar muitas figurinhas.
A vida é mesmo como o futebol. Uma caixinha de surpresas.