Esta história, de vários personagens, aconteceu ano passado no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, o Itaci. Dado o tempo, é bem possível que alguns acontecimentos estejam fora de ordem, mas o que conto é o que ficou marcado aqui em minha memória.
A primeira memória
Estávamos quase terminando os atendimentos. Ao passarmos pela recepção da Quimioterapia, avistamos uma garotinha de cabelos compridos, lisos e muito escuros olhando pela janela. Ela olhava fixamente para a lanchonete do lado de fora e suas feições eram bem próximas a uma criança indígena. Tentamos contato, mas ela só pronunciou uma única palavra: “Fome!”.
Memória 2
Em minha segunda memória, se decorreu uma semana. Logo que chegamos ao hospital, passamos em algumas alas com o que chamamos de “visita de cara limpa” – assim como os profissionais de saúde, nós também pegamos o plantão, coletando informações sobre as crianças. Foi quando descobrimos que uma criança guarani havia sido internada. Era ela!
Já de palhaços, eu e o Dr. De Dérson entramos em seu quarto, mas pouco conseguimos nos comunicar verbalmente. Sua mãe não entendia nada do que falávamos e, ela, somente algumas poucas palavras. Com mímicas, descobrimos que beija-flor se fala “manuí”. Improvisamos uma música com essa palavra e saímos.
Em conversa com uma médica do hospital, ficamos sabendo que a própria equipe estava com dificuldade de interagir com a mãe e a filha. Lembramos que a artista Vera Abbud, a Dra. Emily, havia sido casada com um índio de uma aldeia Guarani e que talvez pudesse ajudar na comunicação. A ideia foi bem recebida e, na semana seguinte, a Vera veio trabalhar no Itaci em meu lugar, fazendo par com o Anderson (o Dr. De Dérson).
Dias depois, em meu retorno, em todos os cantos do hospital só se falava na visita da Vera, tanto que pediram um bis. Ela topou.
Memória 3
Esta memória me leva ao dia em que a Vera fez dupla comigo no Itaci. A Raíssa, artista nova em processo de formação no Doutores, estava conosco. Éramos então: Dr. Pysthollynha, Dra. Emily e Dra. Faísca.
Nosso encontro foi na brinquedoteca, onde a criança estava com a fonoaudióloga. Emily havia trazido alguns livros de fotos da aldeia Guarani e os colocou sobre a mesa. De máscara protetora e cabelos presos, a menina começou a apontar e nos contar histórias sobre sua vida. Incrível.
O palhaço estava ali apenas para fazer uma conexão, e não graça, e tinha uma potência impressionante.
Juntou-se a nós a sua médica. A menina então levantou-se, soltou os cabelos e começou a nos ensinar como é a dança em sua aldeia. Ficamos todos de mãos dadas, dançando em plena brinquedoteca. As mulheres – palhaças, médicas e fonoaudiólogas – para o lado e eu, o único homem, para a frente, conforme ela tinha nos explicado.
Por baixo da máscara percebia-se nitidamente o seu sorriso aberto.
Memória 4
Passou uma semana e lá estávamos nós de volta. Encontramos a criança em isolamento, se preparando para o transplante de medula óssea. Soubemos que um de seus irmãos tinha dado compatível, o que era uma boa notícia, mas nunca a certeza de sucesso. Não a encontramos durante um bom tempo. Passávamos pela porta de seu quarto e sempre apertava o coração.
A equipe nos contou que o transplante tinha dado certo e que ela tinha saído, de alta, para a Casa do Índio, uma instituição de apoio a famílias indígenas. Excelente notícia.
A memória final
A vida seguiu. Até que, no final do ano, demos de cara com a pequena, que usava um gorrinho preto, na salinha de isolamento da Quimioterapia. Ela fazia o chamado “controle”. Pelo vidro, de longe, acenamos e fizemos umas brincadeiras.
E esta cena final me lembro de todo o coração: a menina tirou o gorro e alisou a cabeça, com alguns cabelos que começavam a nascer novamente.
“Cabelo!”, disse. Saímos cantando a música do manuí.