Depois das férias de fim de ano dos artistas do nosso elenco, antes de retomar a atuação nos hospitais, a diretoria artística dos Doutores da Alegria realiza uma semana de encontros para conversas e discussões sobre o trabalho dos palhaços.
Geralmente, algumas pessoas são convidadas para falar sobre temas relevantes. Esses encontros são internos, restritos aos artistas que compõem a organização e fazem parte da política de formação e aprimoramento contínuo do elenco.
Este ano, os artistas ouviram com muito entusiasmo a historiadora Ermínia Silva, que lança nesta quarta-feira (9), a segunda edição do livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil.
O lançamento faz parte da programação especial do Itaú Cultural dedicada ao universo do circo e inspirada pela história do palhaço Benjamim de Oliveira, que está acontecendo neste mês de fevereiro.
Doutores da Alegria participa dessa programação com a exibição do espetáculo Aquele Momento Em Que… e um debate sobre “Palhaçaria em Território de Vulnerabilidade Social e Saúde Mental”.
Confira os detalhes sobre a participação dos Doutores da Alegria na programação do Itaú Cultural.
O livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil resgata as contribuições de Benjamim de Oliveira para a cultura no Brasil. A primeira edição foi lançada em 2003 e estava esgotada. Nesta segunda edição, uma parceria entre o Itaú Cultural e a editora WMF Martins Fontes, a pesquisa foi ampliada. A autora incluiu um capítulo assinado em parceria com Daniel de Carvalho Lopes, que também fez a revisão do material. A apresentação, assim como na primeira edição, é do dramaturgo e pesquisador Luís Alberto de Abreu. Os dois pesquisadores participam do lançamento na noite desta quarta-feira ao lado de Ermínia Silva, no Youtube do Itaú Cultural.
Benjamim de Oliveira (1870-1954) foi um dos mais importantes artistas circenses do Brasil. Além de palhaço, Benjamim foi também ginasta, acrobata, músico, cantor, dançarino, ator, autor de músicas e peças de teatro e diretor.
Para Ermínia Silva, que foi uma das curadoras da exposição sobre o artista na série Ocupação Cultural, do Itaú Cultural, “não se pode contar a história da música, do teatro, da dança, das festas populares, do rádio, do cinema, da televisão, das questões políticas, econômicas, sem falar de circo. E o tempo inteiro há uma disputa de memória, que é uma disputa de poderes e de saberes”. Essa exposição fica em cartaz até 13 de março.
Conversamos sobre o livro e o seu personagem principal com a autora Ermínia Silva.
Confira a entrevista!
Entrevista || Ermínia Silva
Benjamim de Oliveira é considerado por algumas pessoas o primeiro palhaço negro do Brasil e o inventor do circo-teatro. O que você acha desses títulos?
É, as pessoas insistem em colocar Benjamim como o primeiro palhaço negro e o inventor do circo-teatro. Foi Procópio Ferreira quem inventou essa história na década de 1940. Benjamim já era bem idoso, confirma, mas eu falo: se você considera ele o primeiro palhaço negro, você não dá visibilidade para a quantidade de pretos e pretas que já trabalhavam no circo. Você os torna invisíveis. Eles são anônimos, mas eu não posso invisibilizar essas pessoas.
Benjamim era mineiro e, apesar de já ter nascido alforriado, era filho de uma escrava e de um capataz de uma fazenda, que perseguia escravos fujões. Como ele se torna artista?
Ele foge com o circo e começa a trabalhar aos 12 anos. Ele diz, nos relatos orais, que três meses depois da fuga ele já estreia como acrobático, com um número de bambu (uma vara vertical suspensa, onde dois artistas fazem evoluções). Ele estreia no circo Sotero, que é um circo de taipa, que não é coberto.
E a história como palhaço?
Ele fala que estreou como palhaço quando tinha 19 anos, ainda no final do século 19, mas já na República. Ele está num circo, em São Paulo e o principal palhaço desse circo está doente e o Albano Pereira (proprietário de circo) fala: “Benjamim é quem vai substituir”. Ele entra em pânico. Esse é o relato oral. Aí ele diz que entra em pânico, que não sabia nada. Na realidade ele sabia, mas achava que não sabia nada. Ele é um bom palhaço, e é um bom cantor e tocador de violão, então ele cantava vários lundus, maxixes, modinhas, que mexiam muito com o público. Ser palhaço naquele momento era reunir tudo isso, era ser palhaço cantor, saltador, excêntrico, essas coisas todas.
Ele relata que nessa primeira experiência dele como palhaço ele é muito vaiado. Aí teve um momento em que alguém do público fez uma coroa de capim para ele e jogou a cora. Ele pega essa coroa e diz: “bom, se Cristo recebeu a coroa de espinho, eu vou colocar essa coroa”. E dão risada. Não sabemos quem fez isso, como jogou, como ele estabeleceu esse diálogo com o público. Mas o público riu, é porque fez sentido. A partir daí, ele passa por vários circos de famílias produtoras circenses importantes do Brasil. Ele vai aprendendo em todos os circos.
De que forma a questão da cor e do racismo marcaram a trajetória de Benjamim?
Benjamim não fala sobre isso explicitamente, mas fala o tempo inteiro. Entende? Não tem nenhum momento em que ele fala de algum problema que ele teve por ser negro. Só que quando você lê as peças dele, as adaptações dele das peças, essa questão está sempre colocada. Quando ele canta as músicas do Eduardo das Neves e de outras pessoas, ele também está falando disso. Eduardo das Neves era ativista de bandeira, abolicionista. Ele não é alguém que fica balançando a bandeira, mas ele fala disso o tempo inteiro. E eu fui perceber isso bem depois da minha pesquisa. Na segunda edição, eu faço esse debate.
Numa entrevista de 1948, ele começa a falar da história do pai e da mãe. A mãe era uma escrava doméstica, os donos gostavam muito dela, por isso que eles alforriaram o ventre dela. Todos os filhos da Leandra, mãe do Benjamim, foram alforriados ao nascer desde 1870, um ano antes da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871), já nasceram alforriados. E o pai era capitão do mato, caçador de escravos fugidos. E quando ele começa a falar do pai, ele diz: “mas eu não quero mais falar disso”
Ele em nenhum momento, explicitamente fala disso, mas isso está lá. Eu tive essa percepção de alguns anos para cá. Quer um exemplo? Benjamim cedeu o circo em 1913 para a primeira disputa nacional de capoeira e capoeira era proibido por lei. E quem são os corpos capoeiristas? Os pretos. Em Recife, teve um trabalho de mestrado em que a autora fala dos capoeiras do Recife e tem um momento que ela fala de uma reportagem em Recife, citando esse campeonato nacional de capoeira, no circo Spinelli, pelo Benjamim de Oliveira. Desse jeito, ele faz uma disputa de memória, ele coloca dentro do circo.
A quantidade de atores pretos que trabalham no circo dele é enorme. Outro exemplo é a história de João Cândido, líder da Revolta da Chibata. Quando João Cândido é libertado, a Marinha propõe um acordo e eles topam, mas eles são traídos, vários são presos e morrem. Quando João Cândido é libertado em 1913, há uma tentativa de passar um filme do João Cândido, mas foi proibido. E aí Benjamim de Oliveira faz um espetáculo em benefício ao João Cândido.
Esse é um exemplo pontual, mas você tem os textos, as músicas, as peças, então em nenhum momento ele explicita a bandeira do ativismo, mas ele fala disso o tempo inteiro.
Lançamento do livro Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil na mesa Memórias e Reinvenção – o que mantém o circo?
Com Ermínia Silva e Luís Alberto Abreu e mediação de Daniel Lopes
Quando: 9 de fevereiro, quarta-feira, às 20h
Onde: YouTube do Itaú Cultural