O sorriso de dentes miúdos da menina iluminava o dia. O laço de fita rosa na cabeça enchia a vista de poesia. Olhar curioso, devorava tudo o que via. Sentada na cama, espremia os olhos quando sorria.
Assim que chegamos à UTI, a enfermeira veio nos pedir que entrássemos no quarto de Iza. Já tivemos muitos encontros bonitos e fomos avisados de que agora ela estava em cuidados paliativos.
Respiramos.
Abrimos a porta do quarto em que ela estava. A janela estava fechada, mas era como se o vento estivesse soprando forte, prevendo redemoinho.
Respiramos mais.
Iza estava dormindo, sua mãe ao lado. Pedimos permissão e entramos. Pressionei os lábios e eles desenharam uma meia lua com um riso de cumplicidade. Estávamos completamente nus, expostos ao risco em um momento delicadíssimo. Estávamos onde tudo começou e já perto do fim, olhando na beira do precipício, aquela mãe na ponta, de mãos dadas com sua filha.
As palavras passeavam embaralhadas na minha cabeça. Não sabia escolhê-las. Mania delas fugirem quando a gente mais precisa. Tirei do bolso uma caixinha de música e toquei. O som soou baixinho e acordou Iza. Seu corpo muito agitado parecia querer mais oxigênio. Ela reclamou de dor. Sua mãe beijou sua cabeça, colocou as mãos e alisou sua barriga. “Vai passar.”
Nó na garganta.
Pude perceber seus olhos emoldurando um oceano, seu corpo no esforço de se manter firme, mas era evidente que seus ombros pesavam com gravidade. Quanta dor suporta um corpo de uma mãe? Nesse momento, vi crescendo em sua mãe raízes resistentes, rasgando a terra e cravando com profundidade seus pés no solo. O tronco foi se fortalecendo e seus braços-galhos davam todo conforto e segurança para a pequena. Seus olhos inundados, pesados, ameaçavam desaguar uma tempestade.
No meu coração, já chovia fininho.
Iza tinha apenas 1 ano e 7 meses. Iza tinha sua mãe, que tinha raízes. Sua mãe era árvore. Saímos do quarto. Eu estava planando. Eu não estava, só sentia, via meu filho, me via. Elas em mim. Eu. Elas. Nós. Pensei na construção dos nossos encontros ao longo da internação. Da brincadeira, do riso, da confiança… pensei na responsabilidade de testemunhar um momento tão frágil, íntimo, de total vulnerabilidade da mãe com sua filha e de nós, palhaços, com elas, onde a graça aqui é olhar o outro com respeito e compaixão.
Se colocar no lugar do outro e compreender que somos um só, apenas com experiências distintas, outras parecidas. Unidas pela mesma célula, pelo mesmo meio e com a certeza do fim. Voltei ao chão, olhei para Dr. Eu, o meu parceiro de trabalho. Demos as mãos com os olhos e voltamos ao atendimento.
Quando estávamos indo para o almoço, a enfermeira veio avisar que Iza só esperou a gente sair. Foi encantar o céu.
Ela agora não precisa mais da máquina para respirar. Ela é amiga do vento, foi se juntar a ele para soprar brisa para que as folhas da sua mãe balancem leves. Claro que já caíram muitas e vão cair mais. Mas renovar é preciso e a mãe de Iza sabe que toda criança sonha em ter uma casa na árvore. E ficou feliz por continuar sendo seu lar.
“A árvore agora rega a terra com os olhos. Sua filha voltou a ser semente.
Seus braços-galhos, abertos, sempre prontos para o abraço.
Amor de mãe não se enterra.
O oco da terra, fundura.
Uma mãe que perde o filho é reduzida a pedaços e permanece morta todos os dias da vida.
Rosto molhado escorrendo dor e saudade.
A morte come os vivos
Lágrimas são segredos.
Chorar é derramar dor,
É banhar o corpo de alma.
Desconfio que o oceano seja o choro das mães que perdem seus filhos.
Nunca entendi a morte, nunca entendi essa imensidão de água salgada. Agora eu sei.
Os pescadores são pais que lançam anzóis na esperança de resgatarem seus filhos.
A morte deixa o corpo vazio. Olhos trancados. Boca calada.
Por que a dor não escorre pelo ralo junto com o choro debaixo do chuveiro?
Porque a dor é teimosa, insistente, cava a alma desapressada.
Por que ela não murcha como as flores? Não seca como os rios.
Por que a dor não morre junto com a morte?
Tudo morre, menos a dor. Essa é tatuada na eternidade.”