A gente sai do hospital, mas o hospital não sai da gente. Todo ano cada dupla de palhaços troca o hospital de atuação. E lá fica durante todo o ano. Antes de sair do Itaci, o Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, eu resolvi escrever uma carta. Uma carta ao tempo, ao amor, à morte e ao riso.
Ser palhaça é o serviço que escolhi. E escolhi servir como palhaça no hospital. Eu digo que a gente sai do hospital e hospital não sai da gente porque me peguei em pleno domingo pensando no hospital. Acabei de assistir um filme aleatório na Netflix, para distrair um pouco, chamado “A beleza oculta”, com Will Smith.
Segue o spoiler: ele traz a história do luto do personagem principal, que perde a filha de seis anos para um câncer. Ele resolve escrever três cartas: uma ao tempo, outra ao amor e outra à morte. O filme sugere ver com outros olhos, enxergar a beleza oculta da vida, ver através do tempo – este presente que ganhamos todos os dias – e enxergar que a morte carrega a beleza do seu extremo maior, que é a vida.
2019 foi o ano mais difícil e ao mesmo tempo belo do meu trabalho como palhaça do Doutores da Alegria. Durante o ano, eu não soube explicar o que se passou, e eu não sabia até agora como dizer isso aos meus parceiros de trabalho, a cada amigo que fiz no hospital que me perguntava se eu ficaria ali por mais um ano. Como explicar que eu amava profundamente aquele lugar e que ele também me doía profundamente?
Eu nunca havia vivido tantas relações lindas, tantas histórias, nunca havia dado e recebido tanto afeto, acho que também nunca brinquei tanto e também nunca havia perdido tanto. Conheci crianças incríveis que a morte e o tempo levaram. E sabe, foi difícil entender que havia sobrado apenas o amor, amor enraizado em mim em lembranças e memórias que tive com cada uma delas.
E como ver diferente? Como enxergar o belo? Não é a habilidade única, como muitos acham, de palhaça ou de artista enxergar o belo, porque talvez quem esteja escrevendo aqui seja o meu lado mais ser humano, aquele que entendeu que eu não perdi. Eu ganhei. Eu ganhei lindas crianças, eu ganhei delas o amor e o tempo, eu ganhei as memórias, eu ganhei um pedacinho da história delas na minha, eu ganhei essa beleza imensurável da vida, refletida na morte.
E essa é minha carta ao hospital e aos palhaços e palhaças que estarão aqui em 2020. Ganhem o tempo de cada serzinho que cruza o seu caminho, porque é precioso saber o tempo que temos com eles e o que podemos construir, não importando o tempo que ainda nos resta ou sobra. O amor por este servir nos guia todos os dias e dissolve as dificuldades. O amor e o tempo constroem as memórias-tesouros que levaremos até a morte – e não podemos nos esquecer dela para nunca deixar de esquecer de ver o belo da vida…
Eu acrescentaria uma carta ao riso, que foi a ponte entre essas relações, que foi o nosso começo e fim, que tirou a seriedade dos dias. É o riso que transforma o tempo, o amor e até mesmo a morte em algo leve como um dente de leão, que a gente sopra e espalha por aí em forma de alegria, em forma de sementes que cairão em algum canto e darão novas flores pra gente não esquecer nunca que a vida é esse eterno renascer!
Essas lindas crianças nascem todos os dias em mim e me fazem sorrir e ter a certeza de que vim servir. Sou grata por esse ano, sou grata a cada uma dessas crianças que aqui estão e as que partiram, muito obrigada pelo privilégio de fazer parte de suas histórias.