A porta do Miguel* estava fechada há duas semanas. Tinha a plaquinha vermelha na porta, isolamento respiratório.
Numa terça-feira, assim que chegamos à Oncologia Pediátrica do Hospital Santa Marcelina, vimos que a plaquinha tinha sido removida. O isolamento havia acabado e poderíamos finalmente conhecer o Miguel. Antes de entrar no quarto, conversamos com a equipe de Enfermagem, que já foi logo avisando:
– Miguel está apático, deprimido. Conversa pouco. Pode ser difícil a relação…
Entramos. O menino estava no leito e não deu muita bola. Assistia a um desenho na televisão com um olhar vago, de quem está ali sem estar presente. Sua mãe estava sentada na poltrona ao lado da cama. Fomos de mansinho, tentando entender o clima, o contexto, fazendo o diagnóstico da situação para tentar a melhor abordagem.
Começamos com a mãe, que se mostrou mais interessada e se pôs a falar. Na verdade ela realmente queria falar e eu e minha parceira Emily nos pusemos a ouvi-la.
– Esse aqui é o Miguel. Ele tem 15 anos. Olha, é uma idade difícil pra todo mundo, a adolescência, sabe? Ele está fazendo um monte de exames, mas ninguém consegue descobrir o que o meu filho tem. Ele tá é muito deprimido, não tem vontade de fazer nada, não tem interesse por nada…
– Também, aqui não tem nada pra fazer, só exames!, respondeu prontamente o menino, em tom de tédio total.
Para agravar tudo, a mãe contou que tem outro filho, de 19 anos, que descobriu um câncer ano passado. Estava em tratamento e, segundo ela, lidando melhor com a doença do que Miguel. Nisso a senhora começou a chorar.
– Dois filhos com essa doença, um seguido do outro!
Momento de silêncio. Aquele silêncio que parece que dá pra pegar na mão de tão denso, que parece durar três horas mesmo durando apenas três segundos. Então Emily, do alto de seus 27 anos de experiência nos hospitais, lança a pergunta:
– Do que você gosta, Miguel?
– De empinar pipa!
Bingo, gol, bilhete de loteria premiado! Emily é mega power experiente em fazer pipas em quartos cheios de paredes. Essa era a resposta que ela queria ouvir. A palhaça saiu do quarto às pressas e voltou com um rolo de fita adesiva, escolheu a porta do banheiro e começou a montar uma bela pipa, em formato clássico de losango.
Tirou do bolso uma caneta preta e deu na minha mão. Entendi o recado. Comecei a decorar a fita adesiva com desenhos e firulas, deixando a pipa muito bacana. Emily, não satisfeita, pegou papel higiênico e fez pomposas rabiolas. Pra finalizar, faltava a linha da pipa na mão do Miguel.
Emily fez então uma linha bem resistente de fita adesiva dupla, comprida para que o menino pudesse ter bastante folga para pilotar sua pipa. Eu preparei fez um leque de papel toalha pra mãe abanar e fazer ventar no quarto. E pra dar uma sensação mais real, além de abanar com o leque, a mãe abria e fechava a porta do banheiro!
E voilà! Miguel estava empinando uma pipa bem dentro do seu quarto!
A essa altura mãe e filho estavam muito empolgados. Emily, não satisfeita, resolveu fazer outra pipa, desta vez na cortina que serve de divisória para o outro leito, que estava vazio naquele dia. Mais do que depressa começamos novamente todo o processo: fita adesiva, losango, rabiola, decoração de canetinha, linha da pipa e mãe balançando a cortina.
Voilà de novo: agora Miguel empinava duas pipas ao mesmo tempo! Quando estávamos saindo do quarto, a mãe nos pediu a canetinha emprestada:
– É que falta decorar a rabiola!, disse sorrindo. E lá foi toda animada decorar a rabiola da pipa.
Histórias como essa, do Miguel e sua mãe, mostram de maneira muito clara como vale ser palhaça e atuar em hospitais.
* o nome da criança foi alterado para preservar sua identidade.