A morte nos ensina a amar. Quem vai tem que ir e quem fica tem que deixar ir.
Muitas pessoas perguntam como é conviver com a morte de crianças na nossa rotina de trabalho. É uma resposta bem pessoal, cada besteirologista vê de uma forma. O que é comum entre a gente é a ressignificação que damos à morte: a criança vira flor, borboleta, estrela, ar, fogo, água, terra, pássaro…
C. tem 10 anos, seus olhos engolem tudo o que vê. Também, quanta novidade! Tinha acabado de chegar à UTI e seu pai esperava do lado de fora.
– Tem algum recado para ela?, perguntamos. Ele deu uma lágrima, amor líquido.
Contamos para ela todas as fofocas do hospital, até a paquera do Dr. Dud Grud com o porta soro… A prosa na beira do leito rolava solta. Ela morava na mesma cidade em que passei toda minha infância e estudava no mesmo colégio que estudei quando criança! Puxa, trocamos várias figurinhas!
Disse pra ela que adorava a hora do recreio, tinha cheiro de coxinha frita no ar. Disse que mudaria a cor da batina do padre e que colocaria mais água dentro da piscina do pátio. C. nos engolia com seus olhos…
Certa manhã, encontramos com sua mãe e seu pai em frente à UTI.
Não tinha muita gente transitando no local e estavam os dois em silêncio. Na metade do corredor eles nos perceberam. A mãe olhou pra gente e começou a chorar. Na mesma hora tiramos uma flor, de plástico mesmo, do jaleco e entregamos a ela. Falamos que ela poderia regar a flor com sua lágrima.
Nesse mesmo dia, fomos até o leito de C., que estava dormindo. Embalamos seu sono com uma canção. Durante o final de semana, recebemos a notícia da sua morte. A vida deu oportunidade a quem rodeia C. de aprender a amar. Aprender a deixar ir, soltar.
Dr. Marmelo (Marcelo Oliveira)
Hospital da Restauração – Recife